terça-feira, 17 de agosto de 2021

Amônia Na Baixada E Alguns Sorrisos Inusitados


Era por volta de oito horas da manhã de um Domingo. A movimentação social nas ruas era incipiente, apenas algumas pessoas aqui ou ali. Nada parecido com a muvuca que marca o centro da cidade nos outros dias da semana.

Calmos e despreocupados, eu e Carlos caminhávamos... Até que divisamos uma cena inusitada na praça, na área que fica ao lado da Igreja. Entre dois quiosques, uma jovem de roupas curtas aliviava suas necessidades, ou demarcava território, ali mesmo, na rua. Em tom jocoso, mostrando um misto de irreverência e constrangimento, pediu para que eu e Carlos não a olhássemos. Atrás dela, uma amiga, morena corpuda e também de roupas curtas, gargalhava, divertindo-se com a situação.

Carlos olhou de relance e não mais. Eu olhei e continuei a olhar. (Mulher tem esse efeito em mim). Acenei, inclusive, para a coadjuvante morena e corpuda. Ela respondeu com aceno e um belo sorriso. Seriam prostitutas? Baladeiras sofrendo as consequências de um sábado à noite? Não sei, mas achei que a morena era, além de gostosa, simpática. A coisa toda não durou mais do que dois minutos, mas foi o suficiente para aclimatar meu amigo ao zeitgeist da Baixada Fluminense ou ao espírito informal do fluminense, ou do carioca, ou, ainda, a essa permissividade corporal tão comum que existe por estas bandas.

Foi uma pequena cena de escracho público, adorável quando envolve mulheres. É o diferencial da Baixada. Não somos polidos, nem cultos e nem elegantes. Somos espontâneos, precários e meio avacalhados, mas somos divertidos, animados e nosso sorriso é fácil e maravilhoso. E se estivermos na pior, faremos piada e sorriremos pra você. E se algum amigo estiver em apuros, ajudaremos, sorriremos e faremos mais piadas. Tem gente que gosta, tem gente que odeia. Eu mesmo não gosto muito. Prefiro o zeitgeist da Finlândia.

Quando chegamos ao ponto de ônibus, nossas narinas foram imediatamente violentadas pelo odor acre da amônia humana. É por isso que eu gosto da Baixada: aqui a pobreza não se intimida, não se acanha, não se tapa com outdoors, como fazem na Avenida Brasil ou na Linha Amarela. Não, nada disso, senhores. Somos transparentes. Aqui o cheiro de urina velha de mendigo mijão empesteia o ar em quase qualquer ponto de ônibus ou canto imaginável. Reza a lenda que existe até uma confraria secreta de mijões, cujo único e supremo objetivo é mijar em pontos de ônibus e outros lugares indevidos.

Se bem que não é possível culpar os mendigos. Mijar na rua é, na verdade, uma das altas habilidades de sobrevivência cultivada por fluminenses e cariocas. Eu mesmo, apesar de um pouquinho culto, já fiz algumas vezes, quando bêbado. E jamais imaginaria que um brasiliense polido e refinado como meu primo... Porém, para minha surpresa, aconteceu: Carlos anunciou que precisava de um banheiro para mijar. Felizardo! Expliquei a ele que nós fluminenses somos muito sofisticados, performáticos e vanguardistas, e que por isso muitos de nossos bairros da Baixada representam grandes banheiros públicos: com muito lixo, vômitos de bêbados, gente quase pelada dançando e cheiro de urina pra todo lado. Sugeri que ele fosse a um cantinho e jorrasse suas águas por lá. Indiquei o local.

Enquanto Carlos esvaziava a bexiga na velha árvore ao canto da rodovia ainda deserta, eu me perguntava se deveria fotografa-lo. Era sua iniciação na Arte Quase Secreta de Mijar na Rua. Arte essencialmente fluminense.
Ele, o bom e ponderado Carlos, que era meu primo mais intelectualizado, vindo da Capital, jovem e cheio das mais altas aspirações filosóficas e espirituais, ali, vitimado pelas urgências de uma biologia impiedosa. Era cena pitoresca e curiosa, de grande importância histórica e biográfica; digna, portanto, de registro. Decidi, porém, não constrangê-lo. Não tirei foto alguma.

Depois me arrependi. Devia ter tirado. Garantiria-me umas boas risadas.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Maldita Saraiva!



Aconteceu na Saraiva do Shopping de Nova Iguaçu. Acompanhavam-me um amigo e uma amiga. Raramente frequento livrarias (prefiro os sebos, por questões financeiras e estéticas), mas como o amigo, generoso, queria me presentear, e como já estávamos no Shopping, decidi vasculhar a livraria de lá. Pensei em comprar ao menos um livro que quisesse ler e ainda não encontrara em sebos ou pdf's.

Eu tinha dois romances em mente: A Coisa Não Deus, de Alexandre Soares Silva, e Até Você Saber Quem É, de Diogo G. Rosas. O primeiro, um romance bem humorado sobre anjos materialistas e ateus, já o segundo, sombrio e pesado, fala sobre um escritor curitibano atormentado pelo diabo. Ansioso para ler os dois, compraria o que estivesse mais barato.

Enquanto meus amigos, sentados em poltronas da livraria, colocavam suas tretas em dia - eles se amam, e por isso vivem brigando - eu vasculhava as estantes de Literatura Brasileira. Chamou minha atenção o livro novo do Chico Buarque. Folheei e parecia interessante. Pensei, meio que debochando: "todo brasileiro culto tem que ler o Chicão um dia". O cara é membro honorário do panteão de heróis da cultura brasileira, celebrado pela esquerda e invejado pela direita, o tipo de autor que é importante conhecer.

Deixei o Chico e encontrei um volume de crônicas e outros textos da Hilda Hilst. Abri numa página aleatória e começei a ler. No segundo parágrafo o texto já estava tão bom, tão interessante e tão irreverente que me senti obrigado a mostrá-lo aos amigos. Fui lá nas poltronas e interrompi a conversa. "Vocês precisam ler isto aqui", falei. Delimitei o trecho e aguardei que lessem. Passados alguns minutos, o resultado: "Cara, muito bom!" Quem é o autor?
"Autora, na verdade. É uma mulher. Chama-se Hilda Hilst e é uma das grandes escritoras nacionais", respondi. Meu amigo arregalou os olhos maravilhado, e então, como temos uma amiga que gosta muito de Clarice Lispector, eu emendei: "Que mané Clarice Lispector! O negócio é Hilda Hilst, rapaz!". Ele sorriu.

Até nossa amiga presente, leitora de besteiras como Augusto Cury, achou interessante (reação que eu, sinceramente, não esperava). Era uma crônica relativamente simples, na qual Hilda comentava sobre alguns crimes da época. Bateu-me enorme vontade de comprar o livro, mas custava 70 reais - 69, 99 pra ser exato - o que achei abusivo para meu bolso, ou para o bolso do meu compadre.

Feita a propaganda, deixei os amigos conversando e voltei à estante. Lá encontrei mais autores legíveis. Marçal Aquino, Cristóvão Tezza, Moacyr Sciliar e outros escritores contemporâneos que me parecem interessantes mas que ainda não li. E eis que mais abaixo encontro o tal: A Coisa Não Deus, do Alexandre Soares Silva. Fiquei eufórico porque realmente não esperava encontrar o livro. Mas a euforia não durou muito. A capa estava danificada: tinha uma marca, uma linha, de cerca de dois centímetros, com afundamento do papel, como se alguém tivesse martelado o livro com único mas fortíssimo golpe.

"Eles devem ter mais no estoque, não é possível que esta seja a única edição da livraria", foi o que pensei. E como eu já estava cansado de procurar o livro do Diogo G. Rosas, achei que era hora de consultar um atendente. Fui até um jovem com camiseta da loja. Mostrei o livro e a marca deletéria, e perguntei quem eu deveria consultar para saber se tinha na livraria o outro livro que eu procurava ou outra versão do livro que eu tinha em mãos.

O rapaz, com olhar de iletrado, tentou ler o título do livro, balbuciando as sílabas, até que concluiu: "A Coisa Não É de Deus, Alexandre Soares Silva". Fiquei irritado. Achei ofensivo. Uma pessoa que não conhece a estrutura com "negativa + palavra" ("não isso", "não aquilo", como em "Não-Amor", ou em "Não-Vida") não deveria trabalhar numa livraria. Esse enorme erro, digno de um retardado portador de um dígito de QI, ofendeu-me a sensibilidade literária e cognitiva, até porque fazia sugerir que eu, alma refinada e culta, estava comprando um livreto de temática evangélica. Óh Horror!

Mas era uma livraria na Baixada Fluminense. Eu não deveria esperar demais. Deveria estar feliz porque tinha uma livraria ao invés de um Baile Funk cheio de traficantes com fuzis vendendo cocaína ou milicianos vendendo internet pirata. Então deixei o rapaz inculto e crente, e fui até o atendente por ele recomendado. Perguntei se tinha o livro do Diogo G. Rosas. "Até Você Saber Quem É". Não tinha. "Ok, terei de levar este aqui mesmo, pensei". E perguntei se havia outra versão, não danificada.

Não tinha.

"Que merda", pensei. Perguntei quanto custava o livro. 46 reais! Ora, mas nem a pau que eu, que sou quase mendigo, levaria um livro zoado, ainda mais por 46 pilas! Argumentei que o livro estava avacalhado e perguntei se me faziam desconto. O funcionário explicou que o desconto máximo permitido pelo sistema naquele livro era de 4 reais. Ou seja, eu poderia comprá-lo pela bagatela de 42 bonoros. Quase o mandei à puta que o pariu e tive ímpetos de matá-lo à pauladas.

Nesse momento, meus amigos já estavam ao meu lado. "Não vou levar", eu disse, ressentido com a incompetência geral da livraria. Meu amigo, sem saber de minhas recentes desventuras; e, portanto, sem compreender meu estado de espírito, retrucou: "Vai deixar de comprar o livro por causa de quatro reais?". E quando ele disse isso, por mais errado que ele estivesse, eu me senti a pessoa mais mesquinha do universo. Pensei em explicar minha revolta, que era totalmente racional. Mas concluí que levaria algum tempo e eu já estava desanimado. Eu só queria encerrar minha presença naquele lugar. E se ele que iria pagar não se importava, porque eu me importaria? O jeito era levar aquela merda ou sair de mãos abanando. E nem era eu quem pagaria, afinal.

Deixei meu amigo pagar e levei o livro. Livro zoado, marcado, avacalhado, por 42 reais. Da maldita Saraiva. Depois, enquanto almoçávamos, expliquei a eles minha revolta e fizemos uma pesquisa na Amazon. O preço do livro estava 18 reais pela plataforma (e com frete grátis em conta prime).

"É...Demos mole..." Disse o meu bom e caridoso amigo.

"Fui tapeado!" respondi, fazendo referência à célebre frase do Pica Pau.

No prazo de uma semana, com toda a calma do mundo, li o livro. É bem escrito, e tem estilo, tem panache, mas achei ruim e não me empolgou muito - mas dei risada e achei divertido. Certamente não valia meus 42 reais, ao menos não aquela edição, zoada.

A conclusão disso tudo é uma só: Madita seja a Saraiva, os donos da Saraiva, o sistema da Saraiva, as hipsters gostozinhas de cabelo colorido que frequentam a Saraiva, e os funcionários da Saraiva. Da próxima vez que eu for a esse antro pegarei o livro mais caro, levarei ao canto mais escuro, abrirei e o rabiscarei todo, desenhando vários caralhinhos voadores de caneta, só de birra e vingança.

Argumentos são discutíveis, opiniões não...

  Com frequência maior do que considero saudável, reparo — em discussões e pretensos debates — colocações e posturas que, para dizer a verda...