Amônia Na Baixada E Alguns Sorrisos Inusitados


Era por volta de oito horas da manhã de um Domingo. A movimentação social nas ruas era incipiente, apenas algumas pessoas aqui ou ali. Nada parecido com a muvuca que marca o centro da cidade nos outros dias da semana.

Calmos e despreocupados, eu e Carlos caminhávamos... Até que divisamos uma cena inusitada na praça, na área que fica ao lado da Igreja. Entre dois quiosques, uma jovem de roupas curtas aliviava suas necessidades, ou demarcava território, ali mesmo, na rua. Em tom jocoso, mostrando um misto de irreverência e constrangimento, pediu para que eu e Carlos não a olhássemos. Atrás dela, uma amiga, morena corpuda e também de roupas curtas, gargalhava, divertindo-se com a situação.

Carlos olhou de relance e não mais. Eu olhei e continuei a olhar. (Mulher tem esse efeito em mim). Acenei, inclusive, para a coadjuvante morena e corpuda. Ela respondeu com aceno e um belo sorriso. Seriam prostitutas? Baladeiras sofrendo as consequências de um sábado à noite? Não sei, mas achei que a morena era, além de gostosa, simpática. A coisa toda não durou mais do que dois minutos, mas foi o suficiente para aclimatar meu amigo ao zeitgeist da Baixada Fluminense ou ao espírito informal do fluminense, ou do carioca, ou, ainda, a essa permissividade corporal tão comum que existe por estas bandas.

Foi uma pequena cena de escracho público, adorável quando envolve mulheres. É o diferencial da Baixada. Não somos polidos, nem cultos e nem elegantes. Somos espontâneos, precários e meio avacalhados, mas somos divertidos, animados e nosso sorriso é fácil e maravilhoso. E se estivermos na pior, faremos piada e sorriremos pra você. E se algum amigo estiver em apuros, ajudaremos, sorriremos e faremos mais piadas. Tem gente que gosta, tem gente que odeia. Eu mesmo não gosto muito. Prefiro o zeitgeist da Finlândia.

Quando chegamos ao ponto de ônibus, nossas narinas foram imediatamente violentadas pelo odor acre da amônia humana. É por isso que eu gosto da Baixada: aqui a pobreza não se intimida, não se acanha, não se tapa com outdoors, como fazem na Avenida Brasil ou na Linha Amarela. Não, nada disso, senhores. Somos transparentes. Aqui o cheiro de urina velha de mendigo mijão empesteia o ar em quase qualquer ponto de ônibus ou canto imaginável. Reza a lenda que existe até uma confraria secreta de mijões, cujo único e supremo objetivo é mijar em pontos de ônibus e outros lugares indevidos.

Se bem que não é possível culpar os mendigos. Mijar na rua é, na verdade, uma das altas habilidades de sobrevivência cultivada por fluminenses e cariocas. Eu mesmo, apesar de um pouquinho culto, já fiz algumas vezes, quando bêbado. E jamais imaginaria que um brasiliense polido e refinado como meu primo... Porém, para minha surpresa, aconteceu: Carlos anunciou que precisava de um banheiro para mijar. Felizardo! Expliquei a ele que nós fluminenses somos muito sofisticados, performáticos e vanguardistas, e que por isso muitos de nossos bairros da Baixada representam grandes banheiros públicos: com muito lixo, vômitos de bêbados, gente quase pelada dançando e cheiro de urina pra todo lado. Sugeri que ele fosse a um cantinho e jorrasse suas águas por lá. Indiquei o local.

Enquanto Carlos esvaziava a bexiga na velha árvore ao canto da rodovia ainda deserta, eu me perguntava se deveria fotografa-lo. Era sua iniciação na Arte Quase Secreta de Mijar na Rua. Arte essencialmente fluminense.
Ele, o bom e ponderado Carlos, que era meu primo mais intelectualizado, vindo da Capital, jovem e cheio das mais altas aspirações filosóficas e espirituais, ali, vitimado pelas urgências de uma biologia impiedosa. Era cena pitoresca e curiosa, de grande importância histórica e biográfica; digna, portanto, de registro. Decidi, porém, não constrangê-lo. Não tirei foto alguma.

Depois me arrependi. Devia ter tirado. Garantiria-me umas boas risadas.

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