Notas Sobre o Sarau Solidário e as Coisas Legais Que Me Aconteceram Lá - Uma aventura cultural em oito breves capítulos








Capítulo I- O Misantropo No Rolê

Desde que voltei a morar na Baixada Fluminense, decidi que o mais inteligente era conhecer a cultura local, familiarizar-me com os artistas e os eventos para escrever a respeito, documentando e celebrando as conquistas culturais da comunidade. Mas não seria tarefa fácil, porque incluiria sair de casa, ir a lugares, conhecer pessoas, sorrir e socializar - pecados fatais para um misantropo como eu.

Capítulo II - Preparado Para o Pior e O Segredo dos Caminhoneiros

Felizmente, já inventaram as drogas, acessórios divinos que nos permitem o maravilhoso estado da desinibição. Munido da quantidade certa de álcool, torno-me capaz de encarar qualquer evento e qualquer conversa; mesmo ao som de música ruim e com pessoas pouco simpáticas. Assim, quando decidi me aventurar no Sarau Solidário do Projeto Professor Castelano, que eu ainda não conhecia, e do qual eu duvidava, fui preparado para o pior.

Aviso ao leitor que esta é, aliás, a chave de ouro da vida: prepare-se para o pior e então, subtamente, verás o mundo desabrochar em vários pequenos ou grandes eventos agradáveis. O Destino (ou Deus, se você acredita nele) é irônico e gosta de nos surpreender. Por isso a felicidade é como uma borboleta: se você a persegue incansavelmente ela sempre foge, mas se você volta sua atenção para as outras coisas, ela vem suavemente e pousa de mansinho em seu ombro.

Li essa frase num parachoque de caminhão e nunca mais a esqueci. Cito-a porque creio que é um dos grandes segredos do universo. Que Filosofia que nada, que baboseira quântica que nada; a verdadeira sabedoria está nas frases de parachoque de caminhão! Ah, como me arrependo de não ter assistido Carga Pesada! Eu teria sido um homem mais sábio e mais feliz! Mas, continuemos...

Pois bem, o que eu fiz foi voltar-me para os aspectos negativos da vida na Baixada, e então, quando coisas boas acontecem, desfruto-as como se fossem a materialização de um microparaíso na terra. Aconteceu que o Sarau - que foi mais que um Sarau -, do qual eu pouco esperava, foi evento que muito me surpreendeu. Tive várias descobertas positivas, tanto que infelizmente não poderei falar mal do evento. E vocês não sabem como isto - não poder falar mal - é triste para um cronista cultural!

Capítulo III -Decidi Falar Mal - Ou: O Vacilo da Produção

Na verdade, para que não digam que não falei mal, farei ao menos uma reclamação. O evento estava marcado para começar às 16:00 horas. Lá cheguei por volta de 16:20. Via-se os produtores organizando o palco e dois ou três gatos-pingados chegando com alimentos não perecíveis para a doação (que foi um dos acontecimentos do evento). Senti falta de alguém que recebesse as pessoas e de sinalizações públicas, como cartazes, explicando ao público onde colocar os produtos da doação. (Mais tarde, quase duas horas depois, puseram uma mesa onde foram depositadas as doações). Ainda no início, vários produtores saíram e o ambiente ficou quase totalmente abandonado, exceto pela presença dos já mencionados gatos-pingados e do DJ júliomoska, que, aliás, fez história esbanjando uma playlist recheada de perolas.

Eu achava que haveria um Sarau ali, mas começei a ficar em dúvida. Se te dizem que algo vai começar às 16:00 e quando é 16:40 ainda não tem quase nada rolando e os produtores do evento sumiram, você acaba se sentindo meio idiota. Eu sei que o atraso faz parte da alma fluminense, mas também acho que o evento poderia ter sido melhor nesse aspecto. Que disponibilizassem um cronograma com os horários estimados das atrações ou que anunciassem o início às 17:00. Claro que o erro não diminui o mérito do evento, mas foi um pequeno vacilo...

Capítulo IV -Reencontros, Arte e Nostalgia

Pouco antes das 17:00 os artistas responsáveis pela pintura das geladeiras literárias chegaram. Pouco depois, já estavam com as mãos na massa, ou melhor, nos pincéis. Um deles era o meu saudoso amigo Alan Tavares (à esquerda na foto abaixo), que há mais de dez anos eu conheci pelo apelido de "Alan Jiló" (nunca soube a origem do "Jiló"). 

Por causa dos vários anos longe do Rio, havia perdido o contato com Alan. Portanto, quando eu soube que ele seria uma das atrações do Sarau, achei incrível; decidi que seria bom revê-lo e conferir sua evolução artística. Antes que ele começasse a pintar, cheguei chegando e aludindo aos velhos tempos. Alan lembrou-se de mim e recebeu-me com companheirismo e simpatia. Logo descobri que o meu amigo havia se tornado um artista talentoso, respeitado e integrado à comunidade. Ao contrário deste aqui, que fracassou em tudo na vida e que tem preguiça de dizer bom dia ao vizinho.

Eram duas geladeiras, uma sendo pintada por Alan e outra pelo agradável e também talentoso Luiz Arthur, que eu ainda não conhecia. Acabei descobrindo que Luiz é o namorado da Sabrina Coelho, a divertida e metida ruralina com quem eu costumava esbarrar nos eventos artísticos da cidade. Quando Sabrina chegou, trouxe com ela um ar de familiariedade e nostalgia, de modo que o ambiente ficou ainda mais confortável.


Capítulo V- Respeitar a Arte e Outras Lições

Na interação com Alan, fui convidado a dar alguns microrolês nos arredores, já que ele, que só é magro de ruim, estava esfomeado. No percurso, notei a desenvoltura social de meu amigo com os populares da região. É conhecido e considerado, o que acho algo importante e valoroso. O estereótipo de artista depressivo, recluso e alienado é fatal e não passa disso: um estereótipo.

Na caminhada, confessei que os anos me fizeran pensar que ele estava certo no passado, quando, ainda adolescentes, tíveramos o projeto de um quadrinho de Samurai e eu, mais americanizado impossível, propus o nome de Samurai Jimmy! Na época, Alan questionou minha escolha. Por que não poderia ser um nome brasileiro? Alan estava certo. Poderia e deveria! Felizmente a nossa HQ não vingou, caso contrário hoje em dia eu ficaria ainda mais constrangido com a minha submissão cultural de antigamente.

Ainda na adolescência, lembro que eu, que também desenhava, evitava desenhar de graça. Também nisso fui corrigido pelo jovem artista, que me sugeriu desenhar por paixão e não por ganância. Disse, por exemplo, que eu deveria distribuir desenhos para as belas meninas, os amigos e familiares. Na época eu fiquei horrorizado com a proposta. Hoje, porém, eu reconheço que o amigo tinha razão.


Alan Tavares mandando na pintura. Foto gentimente cedida pela talentosa Ana Beatriz.


Agora, vejamos. Eu, que fui ganancioso, jamais ganhei muita grana com desenho e acabei parando de desenhar. E o meu parceiro Alan, que sempre fez por paixão, e na maioria das vezes de graça, agora tirava onda como artista convidado e ainda receberia um troco pela atuação. É de fazer pensar, não?

E provando que ele é mesmo um cara fora da caixinha, Alan, enquanto caminhávamos, confessou-me que ele jamais bebia quando ia desenhar e pintar. Para ele, era uma questão de respeito. Quase uma espécie de sacralização do fazer artístico. Achei inspirador. Mesmo assim, não resisti e tomei uma Budweiser.

Na minha memória o reencontro com Alan, depois de tantos anos, ficará resumido num singelo acontecimento. Enquanto ele pintava a geladeira, curiosos e crianças se aproximavam para admirar seu talento. Gaiato, eu dizia aos incautos que fora o tutor de Alan na arte do desenho, que lhe ensinara todas aquelas técnicas - mentira, claro. Foi quando, admirado, um senhor de aparência popular, de cerca de meia idade, encarou-me e, referindo-se a Alan, indagou: Ele é Artista, não é? Com a dicção cheia e um sorriso de orgulho fraternal no rosto, respondi afirmativamente:

"Sim senhor, ele é Artista. Ele, definitivamente, é Artista."


Capítulo VI- Gente Bacana, Boêmia e Jovem

Com o passar das horas, cada vez mais gente chegava, e aquele lugar que começou vazio e tímido acumulava transeuntes, expectadores e platéia. Depois da terceira Budweiser, eu era o carisma em pessoa. Fiz questão de falar com algumas mocinhas literatas e simpáticas, com os organizadores e com os amigos dos meus amigos. Não devo ter causado boa impressão, mas aí também já é querer demais. A infâmia é minha origem e será meu destino.

Com preguiça de escrever o nome de todo mundo, mas eram todos gente boa!


Uma menina particularmente inteligente - Senhorita C - mostrou-se mais interessante do que eu suspeitava, então, além da boa conversa, fui obrigado a adicioná-la no Instagran. E como o álcool me fazia sociável, dei o pontapé inicial na prosa com outras divertidas meninas, peguei o Instagram de todas. O leitor que não me tome por promíscuo, taradinho, ou malicioso, pois minhas intenções giram sempre em torno da elevação cultural e sou apenas um blogueiro carente que gostaria de ter alguns leitores e leitoras para minhas mal escritas crônicas. Mas, sim, algumas meninas eram bem bonitinhas e caso eu não fosse um monge da cultura, e fosse uns 10 anos mais jovem, e tivesse um emprego, e não fosse tímido, quem sabe não rolava uns beijinhos?

Todo mundo me tratou muito bem, e eu me esforcei para ser escroto e leviano, mas infelizmente não obtive muito sucesso. Parece que estou amaldiçoado a sempre ser querido por onde quer que eu ande. Lastimável. Difícil saber se a culpa é do meu sorriso sincero ou do meu olhar sedutor. Será que nunca serei infame como um Lima Barreto, um Marcelo Mirisola ou um Diogo Mainardi? Coro só de pensar. Deus me livre de ser querido na comunidade.

Chegou a noite e com ela vieram os boêmios, que são como corujas. Entre outras corujas, a noite trouxe outro amigo de adolescência, Luiz Felipe, o famoso Feijão, figuraça e monumento histórico dos rolês etílicos da cidade. Como Feijão conhece todo mundo, apresentou-me alguns de seus amigos e amigas.

Notei que a maioria dos frequentadores do evento eram jovens. Eu odeio jovens, mas naquele momento achei que talvez nem tudo estivesse perdido, afinal.

Capítulo VII - O Brilho dos Artistas

Além da atuação artística dos pintores de geladeiras literárias, muita coisa aconteceu. A mixagem, os samples e os beats do DJ Julio Moska (foto ao lado) fizeram muitos corpos se movimentarem, inclusive o meu. O cara desfilou bom gosto tocando remixes de Emicida, O Rappa, Natiruts, Marechal e artistas que eu não conhecia, como a interessante Ébony. Fiquei até surpreso. Tenho que procurar mais sobre o trabalho dele.

Arrasando na fotografia do evento estava a incrível Ana Beatriz, que faz um impressionante trabalho com seu projeto de fotografias femininas, e que foi certamente uma das pessoas mais legais que eu conheci no rolê. Posso tê-la atrapalhado um pouco, entrando na frente da câmera, mas eu juro que não foi intencional!

Alguns músicos se apresentaram, entre eles o rapper Giga, PretoOrfeu e Layla. Giga mandou bem no rap e mostrou domínio de palco. Mas como não sou um cara do rap, fiquei impressionado mesmo foi com as atuações de PretoOrfeu e depois com a de Layla, dois artistas locais que eu não conhecia. PretoOrfeu, numa performance intimista, com sua voz melodiosa, cantou uma canção autoral muito bonita e forte, que revelava sua sensibilidade poética admirável. Material tocante e profundo. Tive que ir lá cumprimentá-lo, não é todo mundo que tem cabeça para produzir canções de letras poderosas.

Layla (foto abaixo) foi a revelação da noite, ao menos para mim. A menina magrinha e que para um desavisado passaria por tímida e quieta mostrou a maior desenvoltura musical exibindo um repertório de Rock e MPB; cantou Cássia Eller, Raul, Charlie Brown, Pitty, O Rappa e muito mais. Sempre em interpretações inspiradas e afinadíssima, dedilhando seu violão elétrico com a maior potência, tanto que parecia uma guitarra, mandando bem mesmo quando tropeçava num ou noutro acorde - e aí ela fazia uma divertida careta, tirando sarro da situação. A guria é animada demais, interagiu um bocado com a platéia e esbanjou talento e carisma. Cantou até a breguíssima Ana Júlia, que é careta e cansativa, mas que ela quase deixou boa.

Teve ainda a apresentação de outro rapper, que eu não pude ver, e também o recital de poesia. Nesses momentos eu já estava demasiado sonolento (culpa do álcool) para prestar atenção, mas quem viu disse que foi bom, e se disse é porque deve ter sido mesmo. Já ia me esquecendo da apresentação de um documentário sobre a aventura que foi a luta pela emancipação do município de Queimados, e houve ainda a fala solene do secretário de cultura, que parecia um sujeito relativamente jovem e que vem apoiando a movimentação cultural civil no município.

Esqueci alguma coisa? Sim: esqueci de mencionar que vários livros interessantes foram doados. Na hora, dei algumas cotoveladas, alguns empurrões e pescotapas nos leitores concorrentes, puxei os cabelos de algumas menininhas inocentes e deixei bem claro que aqueles livros eram todos meus por direito. Mas as malditas não cederam. Então, depois uma luta sangrenta e cruel, consegui pegar alguns livros interessantes, entre eles: A Origem das Espécies, A Morte e a Morte de Quincas Berro D'água e Uma Mente Brilhante, a biografia do matemático e gênio esquizofrênico John Nesh. No total, arrematei uns sete livros, fazendo uma pequena pilha. Enquanto eu guardava o produto de meu saque, Sabrina, decepcionada, sugeriu que minha conduta não fora das mais elegantes e respeitáveis. Mas que bobeira, os livros estavam lá para doação, não é? Pega quem pode - ou quem é mais rápido e mais forte!

Capítulo VIII- Final- A Perigosa Ideia de Castelano

Cheguei no rolê às 16:20 e saí às 21:10. Quando saí, reparei na mesa de doações; os mantimentos e roupas doados faziam pilhas de um metro e meio. Muito bom. O Sarau Solidário, além de muito bacana, artístico e divertido, foi mesmo solidário.

Se me pedissem a imagem resumida que ficará do rolê, eu citaria a frase que um sorridente Felipp Castelano proferiu quando conversávamos: "aonde eu vou tem livro, bicho".

O organizador Felipp Castelano e o  famigerado autor deste blog


Nisso comentava sobre sua mania terrível e admiradora de espalhar livros pelo município. Pobre Castelano, me pergunto se ele já leu Dom Quixote. Será que ele sabe o quanto os livros são perigosos? O que os livros podem fazer com as pessoas? Eu era um sujeito normal, mas começei a ler muito e vejam o que me aconteceu: fiquei tantã; totalmente bilu tetéia. Livros são agradáveis, mas perigosos...

Encerro esta crônica com uma agradecimento e menção honrosa ao organizador, um dos grandes agentes culturais da Baixada, um cara que faz a diferença, ele mesmo: O Professor Felipp Castelano. Não cheguei a votar nele na última Eleição, mas isso é porque sou marginal, anarquista, vagabundo e não atualizei meu título. Agora tenho um motivo para atualizá-lo. Castelano para Prefeito, minha gente!

Valeu, Felipp, vou colar nos próximos rolês só para poder, com muito carinho e respeito, catar livros, charlatar as tuas alunas e falar mal da organização dos teus eventos. Eis a única conduta decente que se pode esperar de um cronista cultural ébrio e decadente. Sabe como é, tenho que manter a pose.

Outra menção honrosa, desta vez para a queridíssima Ana Beatriz, que com muita gentileza me permitiu dispor das fotos usadas nesta crônica. Valeu, Bea, tu é demais!

Abraços demorados para quem leu tudo e chegou até aqui. Especialmente se for mulher. Especialmente se for bonita. Especialmente se for mulher, bonita e solteira. E mais especialmente ainda se for mulher, bonita, solteira e tiver uma queda incontrolável por cronistas decadentes.

Nos vemos no próximo rolê, caro leitor. E ai de ti se não me pagar uma cerveja. Se a minha língua ficar seca de álcool, não me faltará o veneno da calúnia, e aí tua orelha haverá de queimar na ocasião da próxima crônica. Salve meu vício, que te salvo a reputação.

Nada mais justo, certo?

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